Sentir, é preciso
Publicado: 16 Agosto, 2010 - 00h00
Eduarda Freitas
A morte levou-me à igreja de mão dada com as meninas da minha juventude, que agora são meninas quase mulheres e eu sou mulher sempre menina. Levou-me em passos ligeiros, olhos atentos, com o coração a vaguear por dentro e por fora e ao mesmo tempo por todos e por ninguém. A morte saiu à rua e vestiu os amigos de preto e os velhos de curiosidade. E as pedras da aldeia que o viram crescer, viram-no descer. Nas janelas das casas de pedra, mulheres de olhos vermelhos e cabelos brancos, gordas de si, cheias de histórias e de dias e de anos
e à porta da igreja, homens de chapéus olhavam os rapazes novos, de olhos vermelhos. E uns e outros mediam-se. Os novos dando graças por serem novos, os velhos dando graças de ainda ali estarem. O sino num lamento de aço a fazer lembrar que a hora é fruto de qualquer dia e de qualquer vida, e que ele é o único que vai ficar, depois dos novos e dos velhos. E dizia um velho em jeito de piada sem vontade de rir que enquanto o sino toca por outros é bom sinal, e eu pergunto-me, será?, e olho este país que arde num verão de incêndios que se repete amanhã como se repetiu ontem do dia que vinha de traz e nada muda. No verão as televisões fazem notícia do calor e no inverno vão fazer notícia do frio. A metro, a retalho, como um comércio que morre todos os dias sem perceber que a solução não está nos clientes, está na mercadoria. Às vezes os sábados doem e os domingos também porque corremos sem sabermos para onde e achamos que estamos a parar. E quando finalmente paramos, quando o coração desce a rua que o viu crescer, tudo muda. Tudo mudo. A grande ironia da morte, é que nos faz lembrar da vida.
Eduarda Freitas é jornalista da RTP - Rádio e Televisão de Portugal - e colaboradora do jornal português EXPRESSO. Foi correspondente do jornal A BOLA e jornalista na SIC - Televisão. Trabalhou como jornalista no Semanário TRANSMONTANO e na Rádio INDEPENDENTE.