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Artigo

A violência dupla contra vítimas de abuso sexual

Publicado: 14 Setembro, 2021 - 12h36

 

Desde que o mundo é mundo, o corpo da mulher não é somente o corpo da mulher. No que tange às decisões acerca desse corpo, normalmente homens, do alto de seu poder e valendo-se de certa dose de moralismo, machismo e conservadorismo com pitadas religiosas, acham-se no direito de definir o futuro de nossos ventres. É assim que acontece quando esses debates passam por nosso Parlamento, por exemplo.

 

No Brasil, Estado constitucionalmente laico, ou seja, em que a religião não deveria pautar as discussões políticas, o tema aborto é extremamente delicado. Sempre que vem à baila, normalmente gera discussões acaloradas, em que o lado menos ouvido é o mais interessado na questão – no caso, as mulheres. Por outro lado, não é incomum que ao lado do patriarcado haja sempre um grupo de mulheres empunhando a bandeira a favor da pátria, da família e dos valores cristãos.

 

Antes de continuar seguindo por esse tema espinhoso, mas necessário, quero dizer que o SindSaúde-SP respeita todas as manifestações religiosas, mas respeita, sobretudo, o livre arbítrio da mulher para tomar decisões sobre sua própria vida e o que quer fazer de seu próprio corpo. Além disso, o Sindicato defende que as mulheres tenham o direito, garantido pelo Estado, de que sejam acolhidas e atendidas em suas decisões, para que possam ter saúde, bem-estar e tratamento digno.

 

Em São Paulo, o Hospital Pérola Byington tem sido uma ilha de acolhimento desde 1994, quando foi instalado o Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal, pelo médico obstetra Jefferson Drezett, que não está mais à frente do serviço.

 

Ao longo de todos esses anos, uma equipe multidisciplinar faz um lindo trabalho de atendimento e realização de abortos legais para vítimas de estupro e outros casos previstos em lei.

 

No serviço do Pérola, a vítima conta com psicólogas, assistentes sociais, médicos, entre outros profissionais, que procuram proporcionar, sem julgamentos e dentro do melhor ambiente possível, o procedimento. Se no meio do processo a vítima desistir, tudo bem. O objetivo é respeitá-la em suas decisões.

 

Mas, infelizmente, funcionários e pacientes desse serviço têm sido vítimas do assédio de grupos religiosos contrários ao aborto. O caso mais grave aconteceu em 2019, quando um grupo de mulheres religiosas fez um acampamento na frente do hospital, hostilizando funcionários e pacientes. Recentemente, uma paciente denunciou que, na fila de ultrassom, mulheres estavam distribuindo cópias de bíblias às vítimas.

 

Após repercussão negativa na grande imprensa, o hospital esclareceu que não permite a distribuição de panfletos ou livros e que considera inadmissível a coação às pacientes. A Secretaria de Estado da Saúde também divulgou nota lamentando o episódio, que teria partido de voluntárias do hospital, e lembrando que o Brasil é um estado laico.

 

Desigual até no aborto

 

O serviço oferecido pelo Pérola Byington é amparado pela lei e, sobretudo, oferece dignidade às vítimas, principalmente às mulheres pobres e periféricas que não conseguem arcar com os custos de um procedimento desse porte, pois a sociedade brasileira sabe que, até nisso, o Brasil é um país muito desigual.

 

As mulheres da classe média, quando querem interromper a gestação, podem pagar por clínicas e médicos particulares, ou até mesmo ir para países onde o aborto é legal. As mulheres pobres não podem e muitas morrem ao tentar fazê-los com as próprias mãos ou indo a locais clandestinos.

 

Para se ter a dimensão do problema, no ano passado, conforme dados do DataSUS, o Sistema Único de Saúde (SUS) realizou 80.948 curetagens e aspirações de abortos incompletos ou malsucedidos. Enquanto isso, os números de abortos legais realizados no SUS fica na casa dos mil ao ano.

 

Esses números mostram o quanto nosso país se esquiva de discutir assuntos tão importantes quanto planejamento familiar e a própria violência impingida àquelas que não têm acesso à informação e a tratamentos dignos.

 

Não é um caminho fácil

 

Estou certa de que optar por um aborto, mesmo em casos de violência, não é uma decisão fácil. Estou certa de que é mesmo muito difícil para uma mulher, pois envolve muita culpa e um vendaval de emoções, ainda que a gestação tenha sido fruto de um ato violento.

 

Por essa razão, o acolhimento à mulher vítima da violência é extremamente importante, porque tudo o que ela quer, imagino, é não ser julgada e sofrer novas violências nesse processo.

 

Sendo assim, estender-lhe a Bíblia em um momento em que ela se sente tão fragilizada, é outra forma de violência. Distribuir o livro sagrado simboliza muito mais um julgamento e não um ato de empatia e amor, como nos ensinam os valores cristãos.

 

Estou certa de que mulheres que buscam por esse serviço estão com uma dor imensurável e, portanto, não estão indo ao local a passeio, o que é muito diferente de quem procura hospedagem em hotel.

 

 

 

Janaína Luna Santos, diretora Região Centro do Sindsaúde SP