Censura em tempos de democracia fragilizada
Publicado: 10 Setembro, 2020 - 10h53
“Pai, afasta de mim esse cálice” - Chico Buarque e Gilberto Gil
A música de Chico Buarque é de um tempo em que pouco podia se falar. Se fosse uma crítica ao governo, esse pouco era nada. Tanto assim, que foi preciso usar o “cálice de vinho tinto de sangue” para se referir ao cale-se ordenado pelos ditadores de plantão. Não faz muito tempo, pensávamos que, no Brasil, a censura era coisa de um passado triste e lamentável. Ousamos imaginar que tínhamos direito de pensar, escrever, falar e cantar livremente. Apenas esta semana, tivemos duas provas de que isso não é verdade.
A censura paira no ar, não pela ameaça de tortura e morte, mas articulada por governos, empresários e com aval da Justiça. Os Guardiões de Crivella, que pagos com dinheiro público impõem no grito o silêncio às críticas da população à administração da Prefeitura e tentam impedir a imprensa de denunciar as falhas na saúde, é um dos absurdos dos tempos modernos. Trata-se, sem dúvida, de um crime a Prefeitura coordenar um esquema de intimidação como esse.
Da mesma forma, a decisão do juiz Leonardo Grandmasson Ferreira Chaves, da 32ª Vara Cível do Rio de Janeiro, de impedir o jornalista Luiz Nassif de publicar reportagens que denunciam negócios suspeitos envolvendo o Banco BTG Pactual é um atentado contra a liberdade de imprensa. O banco tem entre os seus fundadores o atual ministro da Economia, Paulo Guedes. Poderia ter o Papa, mas não há nenhuma justificativa cabível para determinar censura, agredindo a Constituição Federal que no inciso IX do Artigo 5º determina que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Não são os primeiros nem únicos casos recentes de censura em tempos de democracia fragilizada no país. Quando se tem um presidente capaz de ameaçar e desrespeitar jornalistas com frases como “vontade de encher tua boca de porrada”, “cala a boca, não perguntei nada”, “ela queria dar o furo”, “você tem uma cara de homossexual terrível”, sem que haja nenhuma consequência, não se pode dizer que vivemos uma democracia plena em que a Constituição é respeitada.
Os absurdos diários que temos presenciado, e que agora querem nos obrigar a engolir calados, são sinais do abismo em que nos jogaram desde o golpe parlamentar de 2016. A conivência das instituições com as manobras para retirar do poder um governo legitimamente eleito, sem que houvesse crime de responsabilidade, abriu as portas para que todas as regras democráticas fossem quebradas desde então.
Estamos de volta ao passado. Um passado marcado por arbitrariedades em que a censura é um elemento de controle decisivo. Vivemos, como diz a música, uma espécie de “pileque homérico” em que querem nos fazer manter “a palavra presa na garganta”. Rebelar-se contra a censura é mais do que uma necessidade. É um dever.
Sandro Cezar é presidente da CNTSS/CUT – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social e da CUT RJ – Central Única dos Trabalhadores do Rio de Janeiro