A Reforma da Previdência e as confissões do açougueiro
Publicado: 03 Agosto, 2017 - 15h52
* artigo publicado orignalmente na Carta Capital
Reformas da Previdência são necessárias. Mas quais reformas? Alguma reforma fiscalista que destrua o principal mecanismo de proteção social com que os brasileiros contam? Ou reforma que elevará o número de brasileiros idosos em situação de pobreza extrema, de 0,8% para mais de 50% da população total?
Reformas dessa envergadura têm reflexo direto na vida presente e futura das famílias. A Assistência Social e o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) concedem cerca de 35 milhões de benefícios. Direta e indiretamente são mais de 100 milhões de brasileiros assistidos. Cerca de 70% deles recebe benefício médio de 1.197 reais (aposentadoria por idade); e 30% em torno de 2.304 reais (por tempo de contribuição).
Reformar sem debater com a sociedade é inaceitável. Com a democracia aviltada e o debate interditado, como vivemos hoje no Brasil, prevalece a ditadura do pensamento único dos interlocutores das finanças difundido pela imprensa.
A democracia não é mercadoria, e não se "vende" reforma previdenciária como se vende sabonete. Não se fazem reformas sociais com diagnóstico ginasiano rudimentar baseado em falsas premissas. Nos últimos vinte anos, foram feitas quatro grandes reformas da Previdência. Elas não serviram para nada? Onde, afinal, reside o problema? Na Previdência do Setor Público ou no RGPS? Na aposentadoria dos pobres – aquelas 35 milhões de famílias do RGPS que recebem, em média, menos de dois salários mínimos – ou na aposentadoria dos membros do Judiciário (25,7 mil reais, em média) e do Legislativo (28,6 mil reais), por exemplo?
Se o problema é o Servidor Público, trata-se de um problema de "fluxo" (novos servidores que entraram no serviço público após a reforma concluída em 2012, após 14 anos de tramitação), ou de "estoque" (os servidores que entraram no serviço público antes de 2012)?
Aquela reforma iniciada em 1998 e concluída em 2012 não resolveu o problema dos novos ingressantes? Que problemas persistem? Haverá aposentadoria de "marajá" do setor público em 2060? Servidores públicos que compõem o "estoque" não morrem? Quantos estarão vivos em 2060?
Seria prática de boa democracia manipular a opinião pública com exemplos marginais, que já foram equacionados no futuro, para justificar a imposição de perdas à maioria dos que recebem aposentadoria inferior a dois salários mínimos?
Será verdade que "o Brasil não exige idade mínima" para aposentadoria? Ou ela existe desde os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) criados na década de 1930? A idade mínima não foi talvez mantida pela Lei Orgânica da Previdência Social (1960) e pela Ditadura Militar? E não foi ratificada pelo artigo 201 da Constituição Federal?
As aposentadorias são "precoces"? Quanto representam no total? Trata-se de fato estrutural ou marginal? Essa pretensa questão não foi resolvida em 2015 pela lei do "Fator Progressivo", que em 2026 chegará a 100/90? Quais são os problemas remanescentes? E a reforma das Pensões? Não foi feita em 2015?
Em síntese, para reunir todas essas perguntas em uma única: o Brasil precisa de reforma estrutural ou de reforma tópica? Estando interdito o debate, como está agora, só prosperam por aqui a desinformação e a pós-verdade. A estratégia antidemocrática baseia-se no terrorismo econômico. Argumentos rasteiros construídos não para esclarecer e ilustrar, mas para meter medo, fazem crer que o destino da nação depende única e crucialmente do êxito da reforma fiscalista da Previdência.
Se houvesse debate, a sociedade teria ao menos uma chance de saber que o tão falado suposto "déficit" da Previdência é "argumento" que finge que não vê e despreza o que determina a Constituição da República. Com debate, a sociedade saberia que a Constituição de 1988 na verdade ratificou o sistema tripartite de financiamento das aposentadorias (empregadores, trabalhadores e governo) vigente no Brasil desde os Institutos de Aposentadoria e Pensão instituídos na década de 1930. Um sistema modernizado pelos constituintes, inspirando nos regimes de Bem-Estar Social dos países industrializados que o adotam desde o final do Século XIX. Não no Brasil 2017. Aqui, o aporte que compete ao governo, como determina a Constituição, é considerado "déficit".
Economistas não conseguem acertar nem as mais simples projeções trimestrais. Mas os sábios de Brasília querem nos fazer crer que "sabem", com a precisão milimétrica oferecida por planilhas de Excel, da "catástrofe" nas contas da Previdência que "ocorrerá" daqui a 40 anos. Como acreditar em antevisões do futuro, se não há modelo atuarial adequado? Só palpites sem base científica e sem relevância estatística, construídos por "marqueteiros" para gerar terror.
Quantos velhos temos hoje? Quantos teremos em 2060? O governo não sabe. Problemas metodológicos nas bases de dados do IBGE mostram diferença de 8 milhões de idosos, como já observado em estudo do Dieese. Um governo que não sabe nem quantos velhos temos hoje tem credibilidade para sentenciar alguma futura catástrofe demográfica?
É fato que a população está envelhecendo. Mas quem disse que "não há alternativas"? Nenhuma democracia desenvolvida jamais enfrentou esse problema? Nunca na história do mundo alguma democracia superou com sucesso esse desenvolvimento natural da vida? Claro que sim! E como fizeram? Não temos capacidade para propor alternativas hoje, para um problema previsto para nos alcançar daqui a 40 anos? Nesse caso, para que servem o Ministério de Planejamento e o Ipea, por exemplo?
Hoje, cerca de 50 milhões de trabalhadores estão na informalidade e não contribuem para a Previdência. E se fossem incluídos no mercado de trabalho formal e passassem a contribuir? Não financiariam a aposentadoria de cerca de 58 milhões de idosos que, supostamente, teremos em 2060? A razão de dependência de idosos não melhoraria? O problema é a demografia? Ou é a ausência de modelo de desenvolvimento adequado às necessidades do País?
Sim, haverá menor proporção de trabalhadores contribuintes, para maior número de aposentados. Mas o financiamento da Previdência depende unicamente da contribuição do trabalhador ativo? O que ensina, por exemplo, a experiência da socialdemocracia europeia? Ensina que o financiamento da Seguridade Social (que contempla a Previdência) é preponderantemente integralizado pela “contribuição do governo” e pela “contribuição dos empregadores” (respectivamente, 46% e 34% do total). E a Constituição de 1988? Ela não teria se inspirado nesse modelo? O que rezam os artigos 194 e 195?
Em plena Quarta Revolução Industrial (inteligência artificial, robótica, impressão 3D, etc.), que aprofundará a corrosão dos empregos, o financiamento da Previdência deveria continuar ancorado na base salarial? Qual a experiência de outros países? É razoável fazer projetos para os próximos 40 anos, raciocinando sobre a hipótese de que o cenário do mercado de trabalho em 2060 venha a ser o mesmo que o mundo conheceu em 1960?
O diagnóstico ginasiano rudimentar (e mal-intencionado) conduz a propostas indecentes que, em última instância, limitam o direito a proteção na velhice. Como mostram os dados, a imensa maioria dos brasileiros não têm condições sequer de cumprir 25 anos de contribuição para ter acesso à aposentadoria parcial.
Como afirmar que a reforma "não atinge os pobres", como prega certa elite intelectual, burocrática e jurídica, bem como a incansável propaganda que os rádios repetem sem parar? Quem é pobre? Só seriam pobres os que recebem menos de 2 dólares por dia, como arbitrado pelas agências internacionais? E os 79% dos trabalhadores que recebem até dois salários mínimos? São ricos?
É justo que o acesso ao benefício assistencial (portadores de deficiência e quem tenha renda per capita de até um quarto de salário mínimo) requeira idade mínima (68 anos) superior à exigida para magistrados (65 anos), que têm estabilidade no emprego, salários acima do teto constitucional e folha de pagamento repleta de "penduricalhos"? Se querem "combater privilégios", por que não escrevem sequer uma linha sobre a injustiça tributária, as isenções fiscais, a licença para sonegar (sempre premiada por sucessivos e impagáveis "refinanciamentos") e com a obscena transferência de renda para os rentistas, por meio de juros?
Em nome do "fim dos privilégios", querem unificar as regras para todos os segmentos e, assim, impor ao trabalhador rural do Nordeste regras semelhantes às que são definidas para um Promotor Público de São Paulo. É justo tratar os desiguais como se fossem iguais?
É justo um País de longo passado escravocrata inspirar-se nos regimes previdenciários de países desenvolvidos, se menos de 1% dos municípios brasileiros possuem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) semelhantes àqueles, e mais de 65% dos municípios têm IDH equiparados a países africanos?
É justo impor regras mais duras que as praticadas em nações mais igualitárias, posto que, em muitas daquelas nações, a aposentadoria parcial pode ser obtida por volta dos 60 anos, e não se exige tempo de contribuição?
É justo desconsiderar que, no Brasil, desigual e extremamente heterogêneo, a "média nacional" de diversos indicadores não reflete as diferenças regionais?
A pressa para atender aos interesses dos poderosos, o diagnóstico rudimentar ginasiano ou mal-intencionado e a fragilidade dos argumentos conduzem ao que há de mais deplorável no sistema político brasileiro: o clientelismo rasteiro, o "voto de cabresto" baseado em chantagens.
E o que dizer do suposto "refinanciamento" (por 20 anos, renegociáveis a cada cinco anos) dos cerca de 1,4 bilhão de reais devidos pelos sonegadores, aí incluídos senadores e deputados? E do perdão da dívida do agronegócio, com a Previdência Rural? E do refinanciamento da dívida dos Estados e Municípios inadimplentes, com a Previdência Social? E as negociações com a bancada evangélica, em troca de concessões de rádios e TVs e isenção de IPTU de templos religiosos alugados?
Argumenta-se que os críticos da reforma da Previdência não têm propostas. Temos, sim! Mas, como se vê, o buraco é mais em baixo.
Não se fazem reformas sociais com o rolo compressor de governos antidemocráticos, com desprezar o conhecimento técnico acumulado pelas instituições de pesquisa da sociedade e sem buscar consensos com os diversos segmentos – o que só se faz mediante debate honesto e qualificado.
E, sobretudo, não se fazem reformas dessa envergadura sem a legitimidade do voto popular e sem integridade moral e ética dos governantes. Esse fato, cristalino na vigência da etapa de "estancar a sangria" pela qual passa hoje o Brasil, ganhou contornos dramáticos, com as veias abertas pelas confissões do açougueiro que virou dono de frigorífico. Neste cenário de ilegitimidade cataclísmica, não há outro caminho senão estancar as reformas em curso.
Eduardo Fagnani é professor da UNICAMP