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O Muro de Berlim: uma experiência concreta

Escrito po: Fonte –Rede Brasil Atual

20/10/2009

• Flávio Aguiar

Muito se canta, em prosa e verso, post e blog, tag e chat, o aniversário (20 anos) da queda do Muro de Berlim. Pois eu tive, agora, uma experiência concreta com o muro de Berlim.

Tudo se passou na quinta-feira, 15 de outubro. Fui a uma interessante conferência sobre a visão de Berlim e de seu muro em romances latino-americanos. O encontro aconteceu na sala Simon Bolívar do Instituto Ibero-Americano, instituição de prestígio inegável e mais que merecido, situada num quadrilátero das artes da capital alemã, povoado por mais dois museus e uma das melhores filarmônicas do mundo, tanto quanto à orquestra quanto ao prédio.

Migrante há muito tempo do pago em que nasci, na fímbria do pampa sul-americano, e e/imigrante aqui recém chegado, proveniente da selvagem megalópole paulistana, lá fui com a sensação de que comparecia a evento que se realizava num dos corações da civilização.

A exposição, feita por reconhecida especialista no assunto, foi correta, abrangente, brilhante. Abarcou olhares de brasileiros, argentinos, chilenos, mexicanos e de outros da nossa América Latina, uns viajantes, outros fixados, estes exilados, aqueles simples passantes, dirigidos à cidade e ao seu Muro.

Ao começar o debate, logo notei que o auditório se dividia em dois blocos. Olhando o púlpito, à esquerda ficava um bloco de antigos moradores e partidários da antiga Berlim Oriental. À direita, havia um agrupamento de moradores, que se revelou também partidário, da antiga Berlim Ocidental. Não havia aí necessariamente uma conotação de preferências políticas atuais por partidos de direita, centro ou esquerda. Pelo menos à primeira vista.

Com meu parco alemão, fui percebendo que o tema da conferência passou para segundo plano, e logo depois foi discretamente enxotado para o quintal, o sótão ou o porão. Porque se acendeu o debate entre os dois grupos sobre as cidades em que tinham vivido, antes compulsoriamente divididas pelo finado Muro, e hoje obrigadas a se tornarem uma só.

O debate cresceu, em volume e também no acirramento. Começaram as alfinetadas e logo as agulhadas. Não me lembro bem da ordem das coisas, mas discutiu-se, por exemplo, sobre que lado tinha recebido melhor os intelectuais latino-americanos exilados de suas pátrias e de suas ditaduras. Se mais aquela nem aquele, passou-se das agulhados aos golpes de lança. Surgiram tacapes e voaram as flechadas, umas certeiras, outras exageradas.

De um lado levantou-se o argumento de que havia mais semelhanças entre a Alemanha Ocidental, capitalista, e a Nazista, do que lembrava a nossa vã filosofia. Do outro, também se erguia a mesma sombra sobre a Alemanha Oriental, comunista. Eu, cá com meus botões cada vez mais fechados, lembrei-me de que tanto o serviço secreto de uma como o da outra valeram-se, é verdade, de antigos nazistas. Afinal, para se montar o ofício, teve-se de encarar os invevitáveis cavacos: convocar quem, de ambos os lados, quem, durante quase década e meia, o exercera, e sabia de informações, de informantes, essas coisas.

Enquanto eu e meus botões trocávamos discretamente essas figurinhas, no auditório já voavam pedras como se fossem obuses, enquanto a ex-palestrante tentava mediar a peleia. E era uma peleia linda, digna de Homero, como se foram gregos e troianos. Ou do nosso José de Alencar, que cantou as rixas entre aimorés e goitacazes, tabajaras e potiguaras.

"A antiga Berlim Oriental e suas qualidades parecem hoje inteiramente esquecidas", lançou um brado do lado Oriental, como se fosse uma flecha incendiária, pois pegou fogo mesmo. "Como ousam falar de "ostalgia" (em alemão Leste e Oeste são, respectivamente, Osten e Westen), manifestando saudade do que era apenas e sempre sombrio, escuro, cinzento, feio?", veio do outro lado a pronta pedra.

Houve um momento patético. Os contendores, ao mesmo tempo em que se digladiavam, conversavam entre si, comentando a refrega e ao mesmo tempo concertando estratégias. A certa altura, quando do lado Ocidental, alguns cochichavam algo, do lado Oriental veio um desafio que ao mesmo tempo era um apelo: "Ei, vocês do outro lado, podem falar mais alto pra gente poder escutar?".

Foi quando reparei que no corredor do auditório, entre os dois grupos de cadeira, passava um fio cinzento – certamente de algum microfone. De repente me veio diante dos olhos a imagem de que ele, Ele, ELE, o Muro, ali estva entre nós, gasoso mas sólido, invisível mas mais intransponível do que nunca.

A discussão esgotou-se pelo fim da munição de ambas as partes e pelo adiantado da hora. Ocorreu-me o pensamento de que o Muro foi, claro, um cerceamento, além de ter sido um erro histórico (ver a matéria "Ascensão e queda do Muro de Berlim", na Revista do Brasil). Mas como toda a barreira, era também uma proteção. Agora o muro concreto sumiu. Mas com ele, se sumiu o cerceamento, também sumiu a proteção. Não estou falando dos tanques, das polícias, dos serviços secretos de ambos os lados. Estou falando dos cidadãos comuns. Ambos os lados estão agora frente a frente, desguarnecidos. E também frente a frente com os paredões da própria alma. Desarmar essas bombas de tempo vai levar uma ou duas gerações. Pelo menos.

É claro que escrevo com algum senso de humor. Não podemos esquecer, no entanto, que por trás dessas linhas jazem o horror nazista, a épica vitória sobre ele, o terror das bombas de Hiroshima e Nagasaki, a trágica divisão da Alemanha arrasada, a dramática derrota do regime comunista para o capitalista, e ainda o lirismo de quanta infância, de quanta esperança, de tanto sonho devastados por essa sucessão de holocaustos e hecatombes da humanidade.

"Estás brincando com coisa séria", me dirá alguma voz casmurra, alevantando a lança. "É verdade", responderei, erguendo as mãos espalmadas. "Há alguma razão no que dizes, mas não é toda a razão, nem a única. Brincar com coisa séria de quando em quando também é bom. Isso nos ajuda a enfrentar a azia, a gastrite, as úlceras e até os tumores malignos da História, porque nos ajuda a odiar a guerra e a armar a paz".


•Flávio Aguiar nasceu em 1947, em Porto Alegre. Mora em Berlim e é colaborador da Revista do Brasil. Fez mestrado e doutorado em Teoria Literária na USP e foi professor de Literatura Brasileira dessa universidade de 1973 a 2006. No período da ditadura, foi editor de Cultura do jornal "Movimento". Foi diretor de TV e editor-chefe da página Carta Maior, com a qual continua a colaborar. Autor, organizador e colaborador de dezenas de livros, ganhou três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro.
•(Foto: João Correia Filho)
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