Leandro Uchoas, RJ
Após longa discussão, e surpreendentes mudanças de posição, os vereadores do Rio de Janeiro (RJ) aprovaram no dia 5, por 39 votos a 11, a submissão da responsabilidade pela gestão de áreas sociais às organizações sociais (OSs) - entidades privadas, sem fins lucrativos, que recebem dinheiro público para administrar determinados serviços. Na prática, o projeto representa a privatização de setores da Educação, Saúde, Cultura, Meio-ambiente e Ciência e Tecnologia. Com a decisão, a prefeitura carioca ganha carta branca para contratar instituições, organizações sem fins lucrativos, sem a necessidade de licitação.
Na Educação, uma emenda restringiu a atuação das OSs apenas às creches e ao reforço escolar. O município tem 254 creches, que atendem a 29.347 crianças. Mas Wiria Alcântara, do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE), pondera que isso não pode ser caracterizado como uma vitória. “Creche também é ensino. E com o reforço escolar, já entra [a privatização] nas escolas. Isso significa que as OSs vão estar nas 1.054 escolas da rede [de ensino público]. Esta tem uma carência de 16 mil docentes. Se as OSs entram no reforço escolar, ela está substituindo a carência de um docente. Concretamente, elas entraram na educação fundamental”, explica.
Na Saúde, tais organizações poderão ser utilizadas em novas unidades. Na prática, isso significa delegar às instituições privadas a gestão das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) - principal proposta de governo do prefeito Eduardo Paes em 2008, quando era candidato.
Adesão suspeita A aprovação do projeto não foi fácil. Sindicatos e movimentos sociais acompanharam o processo desde o início e conversaram individualmente com cada vereador. A sensação era de que a proposta não seria aceita. Um substitutivo do vereador Carlo Caiado (DEM), aprovado inicialmente na Câmara, adiou a votação. No momento em que o projeto entrou em pauta, alguns vereadores que tinham assumido o compromisso de votar contra, surpreendentemente mudaram de posição.
“Desde o dia em que conseguimos impedir o trâmite, com o substitutivo, ele [Eduardo Paes] começou a fazer reuniões, cafés-da-manhã com grupos de vereadores. Vários parlamentares, que eram contra o projeto, passaram a ser a favor”, conta Alessandra Souza, do Sindicato dos Trabalhadores em Previdência Social, Saúde e Trabalho (Sindsprev) e que, como Wiria, acompanhou toda a tramitação.
As sindicalistas acusam o prefeito de ter oferecido benesses em troca de votos. Rafael Freitas seria um exemplo. Filho do vereador Aloísio Freitas (DEM), ele recebeu um dos mais significativos postos do município no dia seguinte à primeira aprovação do projeto. O cargo de assessor especial da Subsecretaria de Planejamento Estratégico, da Secretaria Municipal da Casa Civil, consta no Diário Oficial de 30 de abril. O parlamentar foi um dos que havia assumido compromisso de votar contra o projeto, mas na última hora mudou de opinião.
Desregulamentação Ao submeter às instituições privadas a administração de áreas públicas, a Prefeitura se liberta de uma série de responsabilidades constitucionais. As OSs estarão livres de seguir o regime jurídico único, de obedecer a lei das licitações e de respeitar a lei de responsabilidade fiscal. “O vereador perde o direito de fiscalizar, porque agora as administrações serão privadas”, diz o parlamentar Leonel Brizola Neto (PDT), um dos maiores críticos do projeto.
Com a aprovação, também se entrega às OSs o direito de selecionar profissionais através de “outras modalidades de contratação”. Na prática, o governo abre mão da realização de concurso público, para que se contrate através de outros mecanismos. “A forma de contratação ainda não está clara. Tudo indica, por experiência, que será via CLT. Mais um motivo para ser contra”, explica Cíntia Teixeira, do Sindicato dos Nutricionistas (Sinerj). Para ela, o regime iria precarizar ainda mais as relações de trabalho.
Segundo os críticos, o projeto é inconstitucional. Argumenta-se que a utilização do termo “organizações sem fins lucrativos” seria uma forma de mascarar a submissão de setores públicos à administração de instituições privadas, o que fere a Constituição de 1988. Alguns dos maiores opositores na Câmara, como Paulo Pinheiro (PPS), Eliomar Coelho (PSOL) e Lucinha (PSDB), já acenaram na direção de questionar na justiça a constitucionalidade do projeto.
Os sindicatos também planejam recorrer a todos os fóruns possíveis. “Vamos apelar para a justiça, para a OAB; a todos aqueles que foram nossos aliados ao barrar a aprovação automática nas escolas municipais”, afirma Wiria, referendo-se à suspensão do modelo de ensino adotado pela gestão municipal anterior. O Sindicato dos Profissionais de Educação marcou paralisação com assembléia no dia 13, para discutir futuras ações. No dia seguinte será a vez do Sindsprev.
Privatismo Os críticos são unânimes em apontar o caráter neoliberal do projeto. Cíntia diz que em sua área existe “uma clara tendência de priorizar o orçamento para outros fins”. A professora da Escola Municipal Joaquim Nabuco, Maria de Fátima Pereira, explica que “nessa concepção de educação, a escola só teria que formar mão-de-obra. Nós, professores, entendemos que a educação está a serviço do desenvolvimento pleno do estudante”. Segundo elas, as organizações sociais obedeceriam aos mecanismos de produtividade do mercado, que não comportam o fator humano.
“Esse modelo privatista foi justamente o que gerou essa crise mundial. Quem elegeu o PMDB no Rio foram as forças progressistas. Foi o diferencial da campanha. E aqui na Câmara pessoas que têm um lastro de esquerda mudaram, repentinamente, rumo ao neoliberalismo. Isso se dá por conta dessa geléia ideológica que há no país, desde Brasília” acusa Brizola Neto, líder do PDT.
Seu partido, como o PT, dividiu-se na votação. Como ele, o vereador Reimont (PT) posicionou-se contra o projeto desde o início. Jorge Manaia (PDT) e Nereide Pedregal (PDT), bem como o líder do governo, Adilson Pires (PT), votaram a favor. A reportagem tentou entrevistar este parlamentar, principal defensor do projeto. Através de sua assessoria, ele pediu para responder as perguntas por e-mail, mas as respostas não foram enviadas.
Em entrevista ao programa de rádio Faixa Livre, o vereador Paulo Pinheiro diz que o maior problema não é “nem a questão ideológica, que é muito importante, mas o aspecto técnico. Que instituições têm hoje, na cidade, experiência para gerir algo público na área de Saúde e Educação? Nenhuma. Eu conheço pelo menos cinco exemplos negativos”.
Histórico
Surgido durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), o conceito das OSs já foi utilizado no Rio de Janeiro, com formato um pouco diferente. O ex-prefeito César Maia (DEM), por exemplo, submeteu o Hospital Ronaldo Gazzola, conhecido como Hospital de Acari, à administração privada.
Na ocasião, a empresa vencedora da licitação assinou um contrato com a prefeitura de 60 meses para receber R$ 340 milhões. Os novos funcionários passaram a ser regidos pela CLT. Havia um plano de metas. O hospital teria que produzir, por exemplo, 250 internações por mês, e 19 mil exames laboratoriais. A gestão do Hospital tem sido sistematicamente criticada.
A primeira área a ser gerida pelas organizações sociais serão as vilas olímpicas, herança do Pan-americano. Membros do Executivo e parentes do prefeito estão proibidos de participar das OSs. “Mas isso deveria valer para toda a esfera municipal, para membros do Tribunal de Contas, para vereadores. Temos que acabar com a promiscuidade”, denuncia Brizola Neto.