•Clara Bisquola
Matéria com o Promotor de Justiça da Promotoria dos Direitos Humanos na Área de Saúde Pública do Ministério Público de São Paulo, Dr. Arthur Pinto Filho, sobre a inconstitucionalidade do projeto de lei do governador Jose Serra, aprovado pela Assembléia Legislativa em 2/9 que permite que as Organizações Sociais Privadas, OSs, possam assumir não mais apenas hospitais novos, mas aqueles já existentes e em funcionamento, permitindo a venda, de nada menos, que 25% dos leitos desses públicos a serviços abertos e seguros de saúde.
Cntss/Cut - Como o Sr. analisa o projeto de lei que autoriza que os Hospitais públicos atendam 25% dos paciente de rede privada e dos planos de saúde?
Dr. Arthur -Esse projeto encaminhado pelo governador José Serra, e que acabou de ser aprovado na Assembléia Legislativa, possibilita a entrega de todos os hospitais do Estado de São Paulo para as denominadas Organizações Sociais. E o mais terrível: possibilita que as tais OSs, nos hospitais públicos, atendam 25% de pacientes da rede privada ou dos planos de saúde. O projeto ofende a Constituição e é um grave retrocesso no sistema de saúde deste país. Apesar das noticias veiculadas todos esses dias na imprensa, a população não esta sabendo exatamente o que isso significa. Vou dar um exemplo: atendi, na semana passada, uma paciente que alertou que na UBS da Anhaguera 1 existe uma fila de um ano para um atendimento médico ginecológico. Isso é, uma mulher que procure este hospital vai levar um ano para ser atendida. Neste um ano ela pode ter ficado grávida, tido filho ou mesmo até ter morrido. A partir do momento em que essa lei for aprovada, essa fila vai levar um ano e dois meses e meio para poder atende essa mulher. Porque 25% dos atendimentos e dos leitos hospitalares serão entregues aos planos de saúde.
Cntss/Cut - Quem vai lucrar com essa nova Lei?
Dr. Arthur -Quem vai lucrar com essa lei é o setor privado, única e exclusivamente. As OSs, que existem desde a época da falecido Mário Covas, tinham, até a aprovação deste projeto de lei, que atender 100% dos pacientes da rede SUS. Para isso, elas recebem o patrimônio público (os Hospitais), recebem os equipamentos (todos caríssimos) e recebem os funcionários públicos. As Oss, anote-se, não gastam um tostão para receber os Hospitais. Elas atendem os pacientes e o Estado vai paga por tais atendimentos. Agora, com essa nova lei, em vez de atender 100% da rede SUS, vai atender 75% da rede SUS e 25% da rede privada. A partir do momento que essa lei entrar em vigor o SUS perde 25% da vagas da rede pública. Essa é a questão central desta lei.
Cntss/CUT - Mas não é justo os planos de saúde pagarem pelo atendimento de seus conveniados nos Hospitais públicos?
Dr. Arthur - É justíssimo. Já existe lei que permite que se cobre dos planos de saúde os atendimentos feitos nos Hospitais públicos. Vou dar um exemplo pessoal: uma amiga passou mal em pequena cidade do interior. Esta cidade não tinha cobertura do plano de saúde desta amiga. Então, ela foi atendida no Hospital Público, pelo SUS. Pois bem, existe há mais de 10 anos lei que permite que o Hospital público cobre do plano de saúde o atendimento feito. Ocorre que o Estado não cobra dos planos de saúde pelos atendimentos feitos em pessoas que são conveniadas. Não cobra porque não quer. Aliás, seria muito interessante saber a razão pela qual não se cobra dos convênios médicos os atendimentos de seus conveniados pela rede SUS.
Cntss/Cut - A promotoria pública tem acompanhado essa experiência das OSs? Como tem sido essa experiência?
Dr. Arthur -As OSs têm sido uma experiência extremamente lamentável. A terceirização do setor de saúde foi uma experiência feita dentro da idéia do Estado mínimo. Esta idéia morreu no mundo inteiro, inclusive nos Estados Unidos da América do Norte. Dentro da tese do Estado mínimo, o Estado de São Paulo entregou seis hospitais públicos antigos, construídos antes de 1998, para as Oss. Não houve melhoria alguma no atendimento da população. A situação é de tão gravidade que os jornais acabaram de publicar, na semana passada, que os hospitais de Grajaú, Pedreira e Vila Alpina, todos na Capital e terceirizados, atendiam a população sem ter material básico, como papel higiênico e sabonete nos banheiros, quiçá álcool em gel, necessário na fase crítica da gripe suína para fazer a assepsia. É uma falácia dizer que as OSs melhoraram o atendimento. Outra questão muito grave em relação as OSs é que elas recebem o dinheiro público para atender a população, elas não estão fazendo nenhuma caridade, só que a prestação de contas que elas devem fazer ao Estado desse atendimento é feita de forma precaríssima. Isso tem sido tão sério que o presidente do Tribunal de Contas do Estado tem reclamado. Nós da Promotoria estamos verificando a prestação de contas da OSs municipais e esta sendo impossível saber o que acontece....
Cntss/Cut - Quais têm sido as medidas tomadas pela Promotoria para trazer mais transparências a estas prestações de contas?
Dr. Arthur-Nós estamos acertando com os gestores das OSs, no município de São Paulo, uma forma diferente de prestação de contas para que possamos entender o que se passa. Até o momento essas prestações de contas tem se apresentado como uma caixa preta que ninguém consegue compreender o que se passa.
Cntss/Cut -É possível, apesar de votada, impedir a implantação do OSs?
Dr. Arthur - As pessoas que trabalham com as questões de saúde pública deste país têm consciência da gravidade da situação: os promotores públicos, a CNTSS/CUT, o sindicato dos médicos, o sindicato dos psicólogos, o COREN, o Conselho Nacional de Saúde, O Conselho Estadual de Saúde, os trabalhadores da saúde, enfim todos são contra a lei que acabou de ser aprovada. São a favor, ao que parece, o Governo de São Paulo, as OSs e planos privados.
É necessário que a sociedade saiba o quanto isso tudo significa. Nestes próximos dias haverá a Caravana em defesa do SUS aqui, na cidade de São Paulo, que vem ampliando essa discussão no país todo. Temos recebido apoio de várias entidades nacionais que são contra essa lei estadual. Aliás, São Paulo é o único Estado da Federação brasileira que teve a ousadia de entregar 25% das vagas dos hospitais públicos para a rede privada. Esse modelo é de São Paulo, é modelo do Governo José Serra. Isso não existe em nenhum lugar do Brasil. Esta política vai contra a linha de saúde que esta sendo utilizado no mundo, na Europa, no Canadá, todos tem saúde pública. Quem não tem são os Estados Unidos e o Presidente Obama está também tentando implantar saúde pública. Até porque foi eleito para isto.
Cntss/Cut - Essa questão da terceirização não pega somente os hospitais, temos a questão dos laboratórios....
Dr. Arthur - Este modelo de Organizações Sociais de Saúde, que foi implantado em 1998, pelo falecido governador Mário Covas, no Estado de São Paulo, gerou uma situação da maior gravidade para o sistema de saúde. Esse modelo atingiu profundamente hospitais de referência no mundo, terceirizando, por exemplo, parte dos laboratórios do Hospital Emilio Ribas. Esse hospital tem mais de cem anos, é referência mundial e o governo do estado terceirizou parte dos serviços de seus laboratórios. Após muita luta dos médicos e funcionários do hospital, não se logrou promover a terceirização do Hospital, mas de parte dos serviços de laboratórios. Vamos analisar essa parte. Todas as pessoas que estão hospitalizadas no Emílio Ribas e que precisam de urgência nos exames de laboratoriais são atendidas pelo laboratório do próprio Hospital, cujos profissionais são do maior gabarito técnico. Todos os outros usuários que passam pelo hospital, não são internados, mas necessitam de exames laboratoriais, se utilizam (sem saber) dos laboratórios privados. E esses exames têm sido criticados pelos médicos e funcionários do Hospital . Os exames de sangue, por exemplo, mesmo que coletados de manhã, ficam horas esperando porque o coletor passa somente uma ou duas vezes por dia para fazer coleta dos materias a serem analisados. O material é, então, encaminhado para cidade da Grande São Paulo, local em que serão realizados os exames. Isso tudo tem sido denunciado pelos médicos infectologistas do hospital.
Temos vários outros casos, todos envolvendo laboratórios. Temos uma rede de laboratórios com o nome de DASA, que tem um fundo de investimento de capital americano dentre seus proprietários. A DASA faz exames para vários hospitais públicos e o Estado paga esses exames. Nenhum fundo de investimento de capital americano investe em algo que não tenha lucro. O fundo de investimento, pela própria natureza, tem o lucro por objetivo. É fundamental que se saiba como essa empresa DASA funciona no Brasil, essa situação é no mínimo curiosa.
Cntss/Cut -A Promotoria tem poder para reverter essa situação?
Dr. Arthur - O primeiro passo aguardar que o governador José Serra tenha sensibilidade social e vete o projeto. Acho essa hipótese muito difícil porque ele próprio é o autor do projeto. Esta nas mãos dele sancionar ou vetar o projeto. Se miseravelmente esse projeto for sancionado e virar lei é possível uma boa luta. Podemos entrar com uma representação junto ao Procurador Geral da República para que leve o tema ao Supremo Tribunal Federal, porque essa lei é inconstitucional. Agride a Constituição e a lei federal que trata do SUS. A lei federal sequer imagina que hospital público possa atender particulares. Essa é situação que pode ser questionada. Concomitantemente a isso, nós da Promotoria da Justiça dos Direitos Humanos, na Área de Saúde, temos a intenção de questionar juridicamente cada entrega de cada hospital para cada determinada Os, discutindo, inclusive, a falta de licitação. As OSs recebem esses hospitais sem licitação. É uma situação tão caótica que o mais respeitado Professor de Direito Administrativo do Brasil, o Dr. Celso Antonio Bandeira de Melo, tem escrito e mostrado claramente a gravidade da situação. A entrega de Hospitais públicos sem licitação atinge o principio de igualdade, da publicidade, ofendendo os princípios mais caros da Constituição Brasileira. Nós vamos discutir: os 25%; a falta de licitação; a falta de transparência na prestação de contas feitas pelas OSs. Será uma boa causa, em defesa da saúde pública de São Paulo.