PL da gravidez infantil quer transformar profissionais da saúde em carrascos
Publicado: 21 Junho, 2024 - 14h42
No Brasil, a cada 8 minutos, uma mulher é vítima de estupro, segundo dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que apontou também que em 2022, quase 60 mil meninas e meninos denunciaram casos de violência sexual.
Os dados, apesar de assustadores, provavelmente sejam subestimados, se levarmos em consideração o número de menores que seguem invisíveis dentro de seus próprios lares, acuados, ameaçados ou em situações de vulnerabilidade, sem que possam denunciar ou tenham consciência sobre a situação que vivenciam.
O Atlas da Violência estima que ocorram, na realidade, 822 mil casos de estupro por ano no Brasil, dos quais apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e apenas 4,2% sejam notificados ao sistema de saúde.
Os dados apontam também que a cada quatro estupros cometidos contra pessoas “incapazes de consentir”, três eram menores de 14 anos. Seis de cada dez estupros de vulneráveis eram crianças e adolescentes de 0 a 13 anos. Em 64,4% desses casos, o estuprador era familiar (como pai, padrasto, avô, tio) e 21,6% eram conhecidos da vítima (como vizinhos e amigos), mas sem parentesco com ela. Em mais de 70% dos casos, o crime aconteceu em casa e em 65% das ocorrências, em plena luz do dia.
Mesmo diante de todos esses dados, deputados federais da bancada conservadora que dizem querer preservar “a família e os bons costumes” propuseram a mudança do Código Penal e a criminalização das meninas e mulheres que atualmente tem direito ao aborto legal em caso de estupro por riscos à vida da mãe ou em casos de bebê anencéfalos, por meio do Projeto de Lei 1904/2024.
Caso seja aprovado, os abortos que hoje são permitidos em lei serão considerados como crime hediondo, podendo levar a uma pena de até 20 anos, caso seja realizado após as 22 semanas de gestação. Para ser ter uma ideia, a pena máxima para pessoas condenadas por estupro é de 15 anos.
A proposta é um verdadeiro atentado contra as meninas e mulheres. Enquanto, sofremos com uma epidemia de violência sexual em nosso país, sem que haja leis fortes e ações de combate para acabar esse problema que nos assola verdadeiramente, vemos um Congresso composto majoritariamente por homens que querem determinar às mulheres o que fazer com seus corpos.
A descriminalização do aborto no Brasil é um assunto tratado como tabu. A pauta nunca avançou. Parte disso, por conta do grande número de parlamentares que “defendem a família”. Esse discurso seria honroso e louvável, se não fosse usado apenas como escudo para mascarar a crueldade da sociedade machista e hipócrita que quer calar suas vítimas e manter seus privilégios.
Mas o que esse projeto de lei tem a ver conosco, trabalhadoras e trabalhadores da saúde, enquanto profissionais? Se aprovado, os profissionais de saúde que realizarem o procedimento também poderão ser penalizados diante de uma medida que tem como objetivo torná-los delatores.
Justamente nós, que deveríamos acolher e orientar, que lidamos diretamente com o sofrimento dessas vítimas, meninas e mulheres, que identificamos as marcas físicas e psicológicas, seremos obrigados a tratar com mais essa pressão.
Você seria o algoz de uma criança que está sendo abusada, que está perdendo a chance de ter uma infância plena, a denunciando para que o sofrimento que ela já vive possa perdurar por mais 20 anos presa dentro de uma cela? Sem liberdade, sem seus direitos, expostas às situações insalubres de uma prisão?
Não podemos permitir. Nosso papel é ajudar aquele que está em sofrimento, é cuidar, zelar e não ampliar a dor e atuar como carrascos de quem já tanto sofreu.
Nós, do SindSaúde-SP, defendemos a vida e atuamos para preservá-la. Mas, somos a favor da descriminalização do aborto, porque nenhuma vítima deveria ser tratada como criminosa.
Não somos nós, profissionais de saúde, e nem sociedade, que devemos escolher seguir ou não com uma gestação em decorrência de estupro, que coloque a vida da mulher em risco ou se um bebê anencéfalo deve ou não ser gestado. A escolha deve ser da menina ou mulher que está vivendo essa situação. Não cabe a nós julgar ou tomar a decisão. A nós, profissionais da saúde, cabe acolher e prestar um atendimento de qualidade.
Vamos nos unir a essa luta, vamos pra rua ampliar as mobilizações e conversar com as pessoas que conhecemos para tornar esse assunto pauta de nosso dia a dia. Vamos participar das enquetes do Congresso, que aliás aponta que a sociedade é contra o projeto de lei 1904/2024.
Vamos fazer nossa parte em defesa de todas as meninas e mulheres e lutar para que o Congresso pense em medidas que visem acabar com a cultura do estupro e não criminalizar ainda mais as mulheres.
Chega de retrocesso!
Célia Regina Costa é secretária-geral do SindSaúde-SP e presidenta da Federação Nacional de Servidores e Trabalhadores da Saúde (FenacSaúde)
Fonte: https://l1nq.com/fASqg