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Artigo

A reforma trabalhista e o princípio do não retrocesso social

Publicado: 09 Junho, 2017 - 11h33

 

O período pós-golpe de 2016 é marcado por diversos projetos legislativos tendentes a restringir direitos sociais, vitimando especialmente o Direito do Trabalho, dentre os quais se destacam o Projeto de Lei n° 6.787/2016, que tem por objeto a reforma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017, que dispõe sobre o trabalho temporário e a terceirização.

 

Tais proposições podem dizimar o atual modelo de Direito do Trabalho, reduzindo os direitos assegurados pela legislação infraconstitucional e retrocedendo para um modelo desregulamentado e marcado pela autonomia da vontade acima das proteções legais.

 

Todavia, conforme demonstraremos a seguir, a redução de direitos trabalhistas, especialmente aquela trazida no bojo do Projeto de Lei nº 6.787/16, encontra óbice no sistema de proteção consagrado pela Constituição Federal de 1988, o qual veda retrocessos sociais.

 

A Constituição de 1988 é um marco histórico na proteção dos Direitos Fundamentais no Brasil e representou uma grande evolução na proteção desses direitos, especialmente em relação aos de segunda e terceira geração. Seu preâmbulo deixa claro o objetivo do Estado de garantir plenamente os direitos fundamentais, assegurando o exercício dos direitos sociais: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.

 

Ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais¹, o Constituinte conferiu à proteção do ser humano o status de valor supremo da ordem jurídica. É por ele e para ele que a República está orientada. Toda a Constituição foi formulada visando assegurar condições existenciais mínimas para uma vida saudável, que permita o pleno desenvolvimento da personalidade e que promova a participação ativa e co-responsável dos cidadãos nos destinos da própria existência e da sociedade. Evidentemente, este vetor axiológico-normativo deve nortear a elaboração, interpretação e aplicação de toda a legislação infraconstitucional.

 

Para concretizar tal valor supremo, o Constituinte estabeleceu um amplo sistema de proteção, trazendo para o manto de sua tutela um rol exemplificativo de direitos e, assim, garantindo a efetividade de todo e qualquer direito que estivesse abrangido pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

 

Essa proteção pode ser observada em diversos dispositivos, dentre os quais destacamos as previsões dos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 5º, que fixam a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, a proteção aos demais direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal ou por tratados internacionais aos quais a República aderir, bem como a força constitucional dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos.

 

Destaque-se a previsão do 2° do artigo 5º da Constituição Federal, que, ao dispor que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, estabelece expressamente a ampliação da proteção constitucional àqueles direitos fundamentais previstos na legislação infraconstitucional.

 

Já o artigo 7°, ao estabelecer que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, amplia essa proteção não só para os dispositivos infraconstitucionais, como também para as normas coletivas de trabalho, fixando um critério claro para sua validade.

 

Por sua vez, a Emenda Constitucional nº 45/2004, ao atribuir expressamente força de norma constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, reforça a proteção aos direitos fundamentais ao elevar sua posição hierárquica dentro do ordenamento jurídico nacional.

Todas essas disposições têm por objetivo assegurar que os direitos fundamentais concretizados por meio da legislação infraconstitucional sejam preservados, evitando sua revogação por legislação posterior. Assim, consolida-se um patamar mínimo de direitos fundamentais e garante-se o aprimoramento constante do sistema de proteção desses direitos. Nisso consiste o que se convencionou chamar de princípio da vedação do retrocesso ou princípio do não retrocesso.

 

O princípio da vedação do retrocesso é o princípio constitucional implícito de maior relevância para a proteção dos direitos sociais efetivados por meio da legislação infraconstitucional. O constitucionalista português J. J. Canotilho faz brilhantes considerações sobre ele: “A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição da (contra-revolução social) ou da (evolução reaccionária). Com isto, quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional, e um direito subjetctivo²”.

 

O Ministro Celso de Mello, por sua vez, em decisão proferida no Agravo em Recurso Extraordinário nº 639.337, discorre: “O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados³”.

 

Tal decisão é de grande relevância, pois reconhece a vigência e a aplicabilidade do princípio do não retrocesso frente a medidas que visem à redução de direitos sociais.

 

O Direito do Trabalho, por tratar-se de direito social fundamental, é também tutelado por este sistema constitucional de proteção, que abrange não apenas aqueles direitos do trabalhador expressos na Constituição, mas também todos aqueles previstos na legislação infraconstitucional, nas recomendações da Organização Internacional do Trabalho ratificadas pelo Brasil e nas normas coletivas de trabalho, desde que sejam mais benéficos ao trabalhador.

 

Esse sistema de proteção opera pela imutabilidade dos direitos fundamentais em ordem do não retrocesso social e abrange todas as previsões do direito trabalhista, seja em qual esfera normativa for, com o intuito de garantir a manutenção dos direitos conquistados.

 

Não retrocesso social e a égide constitucional dos direitos trabalhistas

 

Nota-se que a principal proposta de reforma trabalhista, constante do Projeto de Lei nº 6.787, de 2016, apresenta dentre suas justificativas o objetivo de aprimorar as relações de trabalho no Brasil, partindo do princípio que houve o aprimoramento das relações capital x trabalho, da autonomia das negociações sem o apoio Estatal e ainda que os pactos laborais são questionados judicialmente frente ao que foi negociado, gerando uma maior judicialização das relações do trabalho.

 

A proposta é composta por dispositivos que flexibilizam os direitos fundamentais dos trabalhadores e, por via de consequência, resulta na redução de direitos trabalhistas protegidos pelo sistema constitucional vigente. Vejamos.

 

Um tema relevante neste Projeto refere-se à prevalência do negociado sobre o legislado. A proposta prima por, segundo suas justificativas, valorizar as negociações realizadas entre os sindicatos e os empregadores; no entanto, ao comparar a legislação vigente com a proposição apresentada, verifica-se que o texto do projeto redunda em mera autorização para reduzir direitos do trabalhador abaixo dos patamares atualmente assegurados.

 

Hoje, as negociações coletivas só podem ser realizadas com a finalidade de ampliar direitos, enquanto a proposta em trâmite objetiva “dar força de lei” à convenção ou a acordo coletivo que disponha sobre algumas condições de trabalho, como férias, jornada de trabalho, intervalo intrajornada, PLR, banco de horas, trabalho remoto, registro de jornada, dentre outros, rebaixando o mínimo legal.

 

A reforma estabelece possibilidades de negociações em detrimento da previsão legal, como é o caso do parcelamento das férias em até três vezes, da negociação da forma de cumprimento da jornada de trabalho e a dilação da jornada mensal para 220 horas, além da concessão de um intervalo para refeição e almoço de no mínimo 30 minutos.

 

As normas sobre jornada de trabalho são afetas à saúde física e psicológica do trabalhador e, por isso, a construção normativa deste tema está embasada em estudos que confrontam a produtividade com a necessidade de garantir e manter a saúde do trabalhador, além de respeitar o seu direito ao lazer e ao convívio social e familiar. Assim, há uma razão em si para o ordenamento jurídico estabelecer a jornada máxima de 8 horas diárias e 44 horas semanais, a concessão de um intervalo mínimo de 1 hora diária e, ainda, a previsão do gozo das férias de 30 dias.

 

Ampliar a jornada além do fixado pela Constituição Federal e CLT, ou reduzir o intervalo intrajornada, ou ainda, aumentar o parcelamento das férias em afronta à CLT, que prioriza a concessão de 30 dias de férias e excepciona o parcelamento em apenas duas vezes, evidencia retrocesso social e afronta o sistema de proteção constitucional.

 

A reforma ainda estipula alteração na previsão celetista quanto à jornada por tempo parcial e na legislação do trabalho temporário.

 

Atualmente, a previsão legal garante o máximo da jornada de 25 horas semanais sem possibilidade de horas extras, enquanto o PL propõe duas modalidades: jornada de 30 horas semanais e jornada de até 26 horas semanais, com a viabilidade de realização de até 6 horas semanais, o que traria uma jornada semanal de 36 horas, ou seja, praticamente a jornada máxima estabelecida pela Constituição de 44 horas semanais. Logo, a justificativa da criação da jornada de tempo parcial deixará de existir, já que a quantidade de horas dedicada ao trabalho inviabilizará a dedicação a outras atividades pessoais do trabalhador – seja dedicação à formação profissional ou acadêmica, aos deveres de cuidados familiares etc. Tudo isso com o agravante de que a remuneração destes trabalhadores é proporcional ao número de horas trabalhadas, podendo ser inferior ao salário-mínimo.

 

No tocante ao trabalho temporário, o Projeto estabelece alterações consideráveis a essa modalidade de contratação, que nos dias de hoje tem como propósito atender à necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou à acréscimo extraordinário de serviços. Em oposição à legislação vigente que se caracteriza pelo uso eventual desta modalidade contratual, a reforma pretende ampliar a sua aplicação, tornando-a habitual. Desta forma, elastece o aumento da duração do contrato de três meses para até 120 dias e estabelece a contratação direta com o cliente ou até mesmo com a empresa tomadora de serviços.

 

As demais previsões do Projeto também flexibilizam a legislação do trabalho nos mesmos termos das exemplificações acima retratadas, sendo evidente a busca pela desfragmentação e pelo enfraquecimento da classe trabalhadora.

 

Logo, a reforma reduz direitos garantidos pela legislação infraconstitucional, que constituem direitos fundamentais e estão protegidos pela vedação principiológica do retrocesso social.

 

Tais propostas, assim como todas aquelas que reduzam os direitos assegurados pela legislação infraconstitucional ou pelas recomendações da Organização Internacional do Trabalho ratificadas pelo Brasil encontram óbice intransponível no sistema de proteção dos direitos fundamentais da Constituição de 1988 e são incompatíveis com a Ordem Constitucional vigente, visto que esta veda expressamente a redução dos direitos sociais já efetivados.

 

 

 

Daniela Costa Gerelli, coordenadora Trabalhista de LBS Advogados – Unidade Campinas. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera/Uniderp e Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/IE)

 

Rivadavio Anadão de Oliveira Guass, Coordenador Cível de LBS Advogados – Unidade Campinas. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Especialista em Direito Civil e Processual Civil

 

 

 

¹“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana;”

²CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª ed. Coimbra: Almedina.

³STF, 2ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, ARE 639337, j. em 23/08/2011.