A CORRUPÇÃO E A PRIVATIZAÇÃO DA COISA PÚBLICA
Publicado: 30 Agosto, 2011 - 00h00
Flavio Lyra (*). Brasília
O caráter materialista e egoísta da vida contemporânea não é inerente à condição humana. Muito do que parece natural hoje em dia data dos anos 1980: a obsessão pelo acúmulo de riqueza o culto da privatização e do setor privado, a crescente desigualdade entre ricos e pobres. Tony Judt, in O Mal que Ronda a Terra, Ed. Objetiva Ltda.(2010).
A corrupção de políticos, funcionários públicos, cientistas, pesquisadores, intelectuais e jornalistas é um fenômeno em crescimento acentuado, já há algum tempo, nas democracias ocidentais.
Os ocupantes dessas profissões estão cada vez mais atuando como representantes ou porta-vozes do poder econômico, utilizando seus dotes profissionais mais para o enriquecimento pessoal e o atendimento dos interesses privados das organizações a que pertencem do que para defenderem os interesses básicos da população.
Não sem fortes razões, as pessoas comuns mostram-se cada vez mais indignadas diante dos casos verdadeiramente chocantes de corrupção de que tomam conhecimento. Infelizmente, não como resultado da ação dos órgãos de controle e da Justiça, como seria de esperar-se.
Já não se respeitam nem os recursos públicos para atender aos atingidos por catástrofes, nem para a doação de medicamentos e alimentos aos mais desassistidos como é o caso da merenda escolar para crianças de escolas públicas.
Essas notícias vêm à tona, freqüentemente, através de vazamentos que se derivam de disputas internas entre as pessoas e grupos envolvidos nos atos de corrupção, ou através do esforço de pesquisa de intelectuais independentes que enfrentam grandes riscos ao denunciarem tais condutas.
No filme documentário, Inside Job, produzido recentemente pelo cineasta norteamericano, Charles Fergusson, tomou-se conhecimento da conduta iníqua de altos funcionários do governo dos Estados Unidos, de congressistas e de professores de universidades de renome.
Todos estes mantiveram relações espúrias com Wall Street, o centro do mundo financeiro, com atuação importante na promoção e defesa da desregulamentação das atividades inerentes e extinção de instrumentos de supervisão pública dos mercados financeiros, que possibilitaram as falcatruas e excessos que levaram à crise iniciada em 2008 e que, ainda, ameaça todo o mundo.
Sabe-se que o presidente do FED, o Banco Central dos Estados Unidos, teve conduta complacente durante vários anos com a expansão descontrolada dos mercados financeiros, o que ele eufemisticamente denominou de exuberância dos mercados. Contribuiu ele, assim, para o maior desastre econômico de que se tem notícia no mundo, depois da crise de 1929, em nome da crença cega de que o mercado financeiro é auto-regulável e eficiente, conforme propalado em textos ortodoxos da sombria ciência econômica.
O povo dos Estados Unidos, já está pagando muito caro o preço da catástrofe em andamento, com os salários dos trabalhadores em declínio, taxas de desemprego em torno de 10% da força de trabalho, redução dos gastos com as políticas sociais e perda de moradias por trabalhadores em face da incapacidade de amortizar as prestações dos empréstimos hipotecários utilizados para adquirir imóveis sobreavaliados em função da especulação nos santificados mercados.
O descompromisso do capitalismo das grandes corporações privadas com a maioria da população fica evidenciada com o que está ocorrendo com a classe média dos Estados Unidos, em processo de encolhimento.
Na época que em o crescimento do consumo supérfluo e o desperdício favoreciam a acumulação de riqueza nas mãos dos capitalistas a classe média cresceu, tornando-se a mais afluente do mundo. Agora, que as fortunas dos capitalistas estão ameaçadas, a classe média deixa de ser importante e o governo destina recursos extraordinários para salvar os bancos.
Ninguém desconhece o enorme custo de salvação da falência de grande número de bancos privados, alguns dos quais tão grandes que não podem falir, pois levariam todo o sistema à bancarrota. Todos eles realizaram operações de alto risco e irregulares, por isto, requereram ajuda pública estimada na impressionante cifra de 800 bilhões de dólares. Daí, redundando necessidade de conter o déficit fiscal resultante, cortando benefícios da classe trabalhadora, em vez de aumentar a tributação sobre os ricos.
Por outro lado, a tentativa de reativar a economia norteamericana com a desvalorização do dólar, com base em vultosa expansão da emissão dessa moeda, que funciona como padrão de valor internacional, espalhou seus efeitos deletérios por todo o mundo, valorizando as moedas dos demais países e produzindo desequilíbrios crescentes na conta corrente do balanço de pagamentos dos países de economias mais frágeis.
Alguns agentes do mercado financeiro dos Estados Unidos, como Bernardo MadofF, um dos operadores mais antigos e famosos do mercado financeiro de Wall Street, que fraudou operações de seus clientes, produzindo-lhes vultosos prejuízos, estimados em 50 bilhões de dólares, acabou na prisão, dando a impressão de que a Justiça resolveu o problema. É apenas jogo de cena, as instituições que levaram à crise permanecem intocadas e agindo segundo os mesmos moldes anteriores.
O Globo desta semana menciona que o grande investidor norteamericano William Buffet, ganhou em um dia 1,3 bilhão de dólares com a valorização das ações do Bank of America por ele adquiridas, enquanto milhões de trabalhadores estão desempregados. Cabe muito bem a pergunta: Que capitalismo é esse?
Aqui no Brasil, nos últimos dois meses, três importantes ministros renunciaram ao cargo, após terem sido denunciados pela realização de negócios suspeitos, envolvendo tráfico de influência e fraude no uso de recursos públicos. Num quarto ministério foram descobertas operações de uso indevido de dinheiro público.
É sabido que esses casos que vêm à tona são apenas uma amostra do que ocorre no funcionamento normal de nossas democracias liberais, em que juízes, políticos e dirigentes da administração pública se deixam corromper em troca de benefícios financeiros, para favorecerem interesses de empresas privadas.
Em que medida trata-se apenas de um problema de pessoas, cuja execração pública seria suficiente para desestimular outros a cometerem os mesmos deslizes? É evidente que é preciso punir os infratores da lei, mas se estamos preocupados em atacar à raiz do problema é preciso ir mais fundo e entender as questões estruturais que moldam nossa sociedade.
Em um artigo recente, A Verdadeira Utopia, ed. Nº 31, o notável filosofo esloveno, Slavov Zizek, ao tratar da luta emancipatória associada à constituição de um novo tipo de sociedade, traduzindo em linguagem atual um texto do divulgador do cristianismo, Paulo de Tarso, no Novo Testamento, diz textualmente: nossa luta não é contra indivíduos corruptos concretos, mas contra todos aqueles no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e a mistificação ideológica que a sustenta.
Quanta energia, pessoas bem intencionadas aqui no Brasil gastaram na INTERNET nas últimas semanas, discutindo se os membros de uma quadrilha que estava desviando recursos do Ministério do Turismo deviam ter sido ou não algemados ao serem detidos. Todos estavam, de certo modo, fazendo repercutir o tema que ocupou as manchetes de jornais e da televisão.
Por certo, a maioria dessas pessoas não se dá conta de que o assunto discutido não vai mudar em nada a realidade do país, pois para cada quadrilha presa surgirão outras, pois o terreno institucional atual é muito fértil para a germinação do crime organizado que ataca os cofres públicos.
A ideologia neoliberal e a ordem econômica privada, da qual é produto e resultado, com o individualismo e o hedonismo exacerbados e a busca do lucro e da riqueza a qualquer custo, num mercado indiferente às reais necessidades da população, são as causas reais do problema. Vivemos uma época de profunda crise na organização econômica e política de nossas sociedades.
Nossa situação atual é semelhante à de peixes num aquário contaminado por vírus, sendo pouco provável que escapemos de ser em alguma medida contaminados. É preciso trocar a água e esterilizar o recipiente para que os peixes voltem a ser saudáveis.
Por outro lado, não faz o menor sentido nos deixarmos manipular por interesses vinculados às elites tradicionais do país, que mobilizam os meios de comunicação aos quais são ligados para criarem um clima favorável ao retorno ao poder das oligarquias econômicas que submetem o grosso da população à exploração em favor da acumulação de riqueza.
Não é uma tarefa fácil, mas é indispensável nesta hora, em que o mundo e nosso país encontram-se numa encruzilhada, saber identificar e separar quais são as forças políticas e lideranças que estão do lado dos interesses da população daquelas que pretendem retornar ao poder para reforçarem os mecanismos de dominação e de submissão do povo a seus objetivos ligados à ordem econômica que privilegia os interesses das grandes corporações privadas nacionais e estrangeiras.
É preciso dar um basta à crescente privatização e mercadorização de todos os elementos que conformam as condições de vida da população e deixar espaço para o que é público (comum a todos) ocupe o espaço necessário. Somente assim, as condições de vida dos que não possuem riqueza acumulada poderão melhorar, mediante o acesso à alimentação, à educação, à saúde, à habitação e à cultura.
A corrupção é apenas uma das faces da sanha privatizante que ameaça penetrar todos os poros da sociedade. Neste caso, com a privatização dos recursos públicos em favor do enriquecimento de corruptos e corruptores.
A construção de uma sociedade mais justa, mais segura, mas pacífica e menos destruidora da natureza não pode ficar na dependência exclusiva de atividades baseadas na geração de lucro e acumulação de riqueza por minorias privilegiadas.
Mudar essa forma de organização econômica e social é que é o real desafio, para o qual os homens de boa vontade estão convocados.