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O nosso lado é o SUS

04/01/2017

Criado em 1982, Programa Radis tem pela frente o desafio de manter vivo o ideário da Reforma Sanitária e os princípios do SUS

Escrito por: Sindsaúde SP

 

O ano era 1987. Em meio aos debates acalorados do campo da saúde na Assembleia Nacional Constituinte, surge um jornal cuja missão seria retratar as diferentes visões em disputa e ao mesmo tempo dar voz àquela proposta que tinha pouco espaço na grande imprensa: a defesa de um sistema público, universal e descentralizado de saúde. O título da publicação revelava o seu propósito de refletir o debate de ideias: “Proposta — O Jornal da Reforma Sanitária” começou a circular nos bastidores da Constituinte. Ele foi criado pelo projeto Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde (Radis), da Fiocruz, nascido cinco anos antes, e que, renomeado Programa Radis de Comunicação e Saúde, completa, em 2017, 35 anos de atividade editorial ininterrupta.

 

O horizonte ainda era incerto: o país engatinhava para superar mais de duas décadas de ditadura militar e retornar à democracia. A esperança estava depositada na Constituinte, que deveria elaborar uma nova Constituição para o país, e nela se refletiam as disputas entre diferentes setores e grupos políticos da sociedade brasileira. Para o campo da Saúde, era a oportunidade de fazer valer uma utopia que vinha sendo discutida desde os anos 1970, com o Movimento Sanitário, e havia tomado corpo na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986: a noção de que a saúde é um direito de todos. Nas páginas da primeira edição do “Proposta”, que circulou em março de 1987, a 8ª era considerada uma “verdadeira festa da democracia”. Para o presidente da Fiocruz à época, o sanitarista Sergio Arouca, a Reforma Sanitária começava a se implantar de uma forma irreversível no país, “não como algo criado em gabinetes, mas como um projeto nacional, democrático, construído, pensado e executado pelo conjunto da nossa sociedade”, afirmou no primeiro editorial da publicação.

 

Naquele ano, o Radis já contava com três outras publicações: “Tema” (que aprofundava grandes questões da saúde), “Súmula” (que repercutia a cobertura e as visões da saúde na imprensa) e “Dados” (que apresentava informações epidemiológicas para subsidiar os debates estratégicos da época). Na visão dos jornalistas Álvaro Nascimento, pesquisador aposentado da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), que coordenou o programa de 1992 a 2001, e Rogério Lannes, atual coordenador e que integra a equipe desde 1987, nas origens do Radis estava a defesa do direito à saúde e da democracia. “Para nós, jornalistas, que nos aproximávamos da saúde naquele momento, a visão da saúde como resultado dos condicionantes sociais era absolutamente revolucionária”, conta Álvaro.

 

Para Rogério, o jornalismo crítico praticado pelo Radis não é imparcial porque tem um compromisso com a Constituição de 1988 e com a defesa do SUS — e essa continuou sendo a marca da revista Radis, lançada em 2002, com periodicidade mensal, para unificar todas as publicações do programa. “A gente faz um jornalismo que tem um lado: a saúde da população, o SUS, a Reforma Sanitária, os direitos sociais”, enfatiza. Ainda assim, ele destaca que não se trata de assumir partidarismos ou cometer incorreções. O caminho retratado nas páginas da revista e na política editorial do programa é exercitar a escuta, garantindo o pluralismo, mas com atenção especial em relação aos grupos ou segmentos negligenciados: “Sempre ouvindo os usuários, ouvindo os críticos ao sistema e as pessoas que estão tocando o SUS”, reforça. Mais do que uma iniciativa que ficou registrada no passado e que fez parte da história do SUS e da redemocratização brasileira, o Radis tem pela frente, ao completar três décadas e meia de existência, o desafio de dialogar com as diferentes realidades sociais brasileiras e “trazer os valores do Movimento Sanitário” para situações concretas vividas nos dias de hoje.

 

Caixa de ressonância

 

O SUS não é o fim, mas sim o começo da transformação das condições de vida da população brasileira. Assim o sanitarista Sergio Arouca definia a atuação da Reforma Sanitária na Assembleia Constituinte, que possibilitou a garantia da Saúde como direito de todos e dever do Estado e abriu um campo de lutas para que aquilo que estava na Constituição não fosse esquecido. O Radis foi fruto e parte desse contexto: criado em 1982, a ideia partiu do economista e sanitarista Sérgio Góes de Paula, professor do Departamento de Ciências Sociais da Ensp/Fiocruz e primeiro coordenador do programa. O propósito inicial era comunicar as discussões sobre temas da Saúde para profissionais da área e alunos que participavam dos cursos da Ensp, mas o Radis acabou se tornando uma “caixa de ressonância” das reivindicações do campo da saúde, conta o historiador Otto Santos de Azevedo.

 

“Desde o seu início o Radis tem um comprometimento com o jornalismo crítico. Mesmo tendo o apoio do Inamps na época [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, encarregado da maioria das ações de saúde pública até a criação do SUS], ele não se furtava em criticar o sistema”, menciona. Otto estudou o “Jornal Proposta”, publicação do programa que circulou de 1987 a 1994, em 36 edições, e a atuação do próprio Radis nos anos 1980 em sua dissertação de mestrado, defendida em 2016 na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Para ele, dentro do Movimento Sanitário, havia a percepção de que era preciso sair dos muros da academia e chegar até à população, porque as publicações “Súmula” e “Dados” estavam mais voltadas para profissionais e estudantes da própria Fiocruz. “O ‘Proposta’ foi resultado de uma necessidade de movimentar as teses discutidas na 8ª, em um veículo de caráter jornalístico e que tivesse uma amplitude maior, para difundir e defender a criação do sistema público de saúde”, explica.

 

Já nos anos 1980, a comunicação feita pelo Radis dava espaço para que profissionais, parlamentares e leitores em geral pudessem emitir suas opiniões e propostas sobre a saúde, enfatiza o historiador. “Os leitores sentiam que o jornal poderia ajudar a perceber e resolver os problemas particulares de cada região e colocar as críticas da população em suas páginas”, aponta. No relato de Álvaro Nascimento, as publicações do Radis traziam a novidade de ir a diferentes municípios brasileiros para ouvir e dar voz aos três setores que estavam envolvidos no processo de municipalização do SUS (usuários, gestores e trabalhadores). “A novidade que nós começamos a trazer era dar voz aos movimentos sociais organizados que se aproximavam do SUS naquele momento”, destacou durante o debate “Jornalismo crítico e independente na construção de uma proposta democrática de saúde”, promovido como parte das comemorações do aniversário de 62 anos da Ensp (14/9).

 

A disputa sobre os rumos da saúde se reflete nas páginas do Proposta e das outras publicações do Radis. Durante a elaboração da Constituição, havia a atuação muito forte do chamado “Centrão”, integrado por parlamentares com maior identificação com a saúde privada, e que entravam em embate com os segmentos que queriam estruturar o sistema público de saúde, universal e descentralizado, explica Otto. “O SUS já nasce com esse enfrentamento entre a saúde privada e o interesse público, e o texto constitucional traduz esse conflito”, explica. Para ele, após a constituição do SUS, ocorre um certo abandono das teses defendidas pelo Movimento Sanitário, com a entrada de um ideário neoliberal durante o governo Collor (1990-1992), e a comunicação feita pelo Radis mantém uma posição bastante crítica quanto aos rumos que estavam sendo tomados.

 

Para o historiador, o Radis não trata a população como “tábula rasa”, como geralmente acontecem com publicações e cartilhas governamentais que tentam mudar os hábitos e impor um modelo de saúde. “O Radis tem uma concepção mais dialógica, que se afina com o conceito ampliado de saúde, buscando superar uma visão restrita à prática biomédica”, ressalta. Nas publicações do programa, ele notou a presença de diferentes vozes da sociedade brasileira e do campo da saúde, como entidades sindicais, movimentos estudantis, organizações do campo da saúde e os próprios leitores. As publicações do programa foram incorporadas na revista Radis, lançada em 2002: “Súmula”, que contou com 88 edições (de 1982 a 2002), “Tema” com 23 (1982-2002), “Dados” com 20 (1982-1996), além do “Jornal Proposta” (1987-1994), com 36 edições.

 

Exercício da escuta

 

Há três décadas e meia, em seu nascimento, o Radis abordava algumas das bandeiras principais que seriam adotadas pelo SUS: regionalização, municipalização e participação comunitária, assuntos da primeira “Tema” (1982). Ouvir quem estava na “ponta”, trabalhando com saúde pública, continuou sendo a tônica da comunicação feita pelo programa, mas dar voz à população era uma novidade que causava resistências. “Por mais que se abraçasse a concepção do controle social, havia resistências em relação às críticas e ao dar voz à sociedade organizada no âmbito do SUS, mesmo entre os gestores simpáticos ao sistema”, conta Álvaro, ao relembrar uma série de matérias feita pelo Radis nos anos 1980 sobre a descentralização da saúde, quando os repórteres foram conhecer a realidade de diferentes municípios brasileiros. Ele relata que alguns gestores estranhavam a cobertura: “Mas por que críticas à minha gestão? ”, comentavam.

 

Além das resistências, também houve retaliações, que ameaçaram a viabilidade do projeto. Álvaro e Rogério se referem ao caso do ministro da Saúde de Collor, Alcenir Guerra, que chegou a exigir que as pautas fossem aprovadas por ele pessoalmente em Brasília. Entre os desafios do tempo presente, Álvaro aponta a necessidade de superar a ideia de que o SUS é um simples processo gerencial, que hoje predomina em relação à visão de que a saúde é resultado de condicionamentos sociais. “A saúde é contemplada na Constituição, não apenas como uma garantia formal, mas como um direito para toda a população com a garantia efetiva de condições sociais dignas, incluindo a participação social”, considera. Para ele, o papel do jornalismo crítico é produzir o que define como “autonomia de consciências”. 

 

Uma comunicação para além dos meios, que não se restrinja apenas a divulgar as ações do governo: essa é a definição da comunicação pública no SUS segundo Janine Cardoso, pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). “Precisamos de uma comunicação que se paute pelos mesmos princípios do SUS, que seja também tomada como direito universal e bem público”, destaca. De acordo com ela, a tarefa do Radis e de outras iniciativas de comunicação no campo da saúde foi superar um modelo autoritário herdado da ditadura, com pouco espaço para o contraditório e a diversidade. “Havia uma concepção de saúde restrita, desvinculada das condições de vida. Herdamos uma comunicação de mesmo molde: restrita, vertical, concentradora, autoritária”, acrescenta. Segundo ela, o Radis talvez seja o projeto mais duradouro de comunicação na área da saúde e isso se deve a uma postura adotada pelo programa: a de escutar a população, como ela enfatiza ao citar uma frase de Rogério — “A melhor forma de comunicar é ouvir”.

 

Ideário presente

 

Mesmo para aqueles que não viveram o contexto da redemocratização ou testemunharam o que foi a Reforma Sanitária, o SUS é uma conquista que precisa ser defendida. É o que destaca Rogério, ao enfatizar que, nos últimos 15 anos, a revista Radis teve a missão de incorporar e atualizar o ideário e os valores do Movimento Sanitário e que balizaram a concepção do SUS. Um dos desafios é a renovação cada vez maior do campo da Saúde: Rogério lembra que na 12ª Conferência Nacional de Saúde, em 2003, pouco depois que a revista foi criada, mais de 90% dos participantes estavam presentes em uma conferência pela primeira vez. “Trazer para a realidade desse novo público os valores do Movimento Sanitário significa menos reafirmar conceitos e mais dar voz às pessoas na sua experiência concreta”, ressalta.

 

Na visão do jornalista, a publicação teve que lidar com novos desafios e questões da atualidade, ao mesmo tempo em que buscava manter o compromisso com um valor assumido com o ideário da 8ª Conferência: o direito à saúde. “Nos anos 2000, as pessoas estavam convivendo com o sistema público de saúde e ele devia muito ainda ao que havia sido prometido com a Constituição”, analisa. Enquanto a mídia comercial se preocupa apenas em destacar os defeitos do SUS, a população ainda espera a concretização de muitas promessas, dentre elas a universalidade e a equidade, destaca Rogério. Uma das missões do Radis, segundo ele, é superar a perspectiva de que o serviço de saúde é benesse ou fruto de determinado gestor: ao invés disso, é uma construção histórica garantida em lei e que deve ser compreendida como um direito.

 

Outra tarefa buscada pela revista é retratar os descompassos entre a visão da sociedade e a posição dos gestores. Segundo ele, a própria Constituição prevê a noção de democracia direta e participativa, mas Radis tem revelado, ao longo de sua história, como as decisões do poder público muitas vezes desconsideram as reivindicações da sociedade. “Esse compromisso originado do ideário de que ‘saúde é democracia’ e ‘democracia é saúde’ se traduz o tempo todo em nossa linha editorial e no esforço de assegurar o direito de voz a diferentes populações”, reflete. Ele considera que não é possível falar de universalidade da saúde sem pensar na questão da equidade e enfrentar as desigualdades — sejam elas de raça, gênero, etnia e condição social. “A tarefa diária é pensar a saúde não somente para aqueles que estão dentro do sistema, mas também para os que estão fora”, enfatiza.

 

Além da garantia do direito à saúde, há ainda o desafio em superar o desconhecimento e a negligência em relação a outro direito: o de comunicar. “A comunicação sempre foi um bem privado na sociedade brasileira”, aponta. Segundo Rogério, o esforço constante do Programa Radis é superar as barreiras oriundas da desinformação e de uma postura de apatia que favorece os interesses privados e prejudica as políticas públicas. Entre os temas que estão na agenda da revista, inclui-se a luta contra o monopólio da comunicação e a favor da democratização da mídia — assim como em defesa da comunicação pública, campo no qual o Radis se insere (Radis 170). “Mesmo feita no Estado, a comunicação pública deve manter a independência em relação ao governo”, assinala.

 

No momento em que grandes ameaças rondam tanto a comunicação quanto a saúde pública no Brasil, o desafio para o Programa Radis é continuar mobilizando as pessoas dentro de um cenário diferente de comunicação, aponta o atual editor da revista, Adriano De Lavor, que integra a equipe desde 2006. “Hoje não é mais possível usar somente os mesmos meios e instrumentos do início da construção da Reforma Sanitária e de defesa da democracia”, analisa, ao considerar que o contexto atual exige uma “reinvenção” das práticas que possibilitem a interlocução entre os diferentes setores que defendem o direito à saúde. Para ele, a comunicação vive hoje um momento de transição, com a chegada de tecnologias móveis com grande poder mobilizador, ao mesmo tempo em que permanecem dificuldades de acesso a esses recursos. “O desafio do Radis hoje é estar consciente desse momento de transição e conseguir se posicionar e se comunicar com estes diferentes públicos, com diferentes acessos, de maneira que a defesa da saúde pública universal, gratuita, equânime e integral ainda seja possível”, reflete.

 

 

 

Sindsaúde SP / Revista Radis

 

 

 

 

 

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