Em meio a reformas, país se divide entre manter seguridade social e aumentar a competitividade de suas empresas
Lúcia Müzell, de Paris, especial para o iG
Há mais de um mês, a população francesa está nas ruas para protestar contra as alterações nas conquistas sociais adquiridas, desta vez para rejeitar o aumento em dois anos do tempo de contribuição social com vistas à aposentadoria. No entanto, uma outra França, que permanece quieta observando as manifestações pela janela, torce para que o país dê o passo rumo a um maior equilíbrio das contas na previdência ao mesmo tempo em que sonha com uma redução dos pesados custos sociais para empregar e demitir funcionários. O custoso sistema social francês, apontado como um dos causadores da restrita competitividade do país no mundo globalizado, entra mais uma vez no discurso dos empresários e de setores liberais do governo, encabeçados pelo próprio presidente Nicolas Sarkozy.
Não há como negar: de acordo com COE-Rexecode, o principal centro privado de pesquisas econômicas da França, as taxas sociais aplicadas em cada empregado fazem a hora de trabalho custar 33,2 euros (R$ 78) no país, enquanto a média europeia é de 24,3 euros e 28,2 na zona euro. Itália, Espanha, Grécia e Portugal, por exemplo, ficam bem abaixo da média europeia, chegando a 12 euros, no caso dos portugueses. A Alemanha, principal concorrente da França, ocupa a oitava posição, pagando 30,6 euros a hora de trabalho. Desde a reunificação alemã, o país tem apostado na competitividade das suas empresas em nível internacional e não mediu esforços para baixar os custos do trabalho, seja reduzindo os salários, seja transferindo a produção para a mão de obra estrangeira.
O custo social - incluindo salário e encargos - coloca as empresas francesas na quarta posição entre as que mais pagam por um funcionário no bloco, atrás de Dinamarca, Bélgica e Luxemburgo. A diferença é que, ao contrário dos líderes da lista, a França é a quinta economia do mundo e tem seu solo recheado por indústrias de peso, como as construtoras de automóveis Renault e Peugeot e a as empreiteiras Vinci e Bouygues.
Mas com uma carga tão elevada sobre os ombros dos empregadores, as empresas cogitam cada vez mais seguir o exemplo da vizinha Alemanha e transferir linhas de produção para outros países mais baratos, na Europa do Leste. No ano passado, Sarkozy conseguiu segurar as duas gigantes automotivas a não deslocar ainda mais linhas de produção do país, à custa de um acordo financeiro que incluiu um empréstimo de 3 bilhões de euros para cada montadora.
Na semana passada, foi a vez de a empresa aérea de baixas tarifas Ryan Air anunciar que deixaria de operar 23 linhas no país por conta da rigidez da legislação trabalhista francesa, enquanto as operadoras de telemarketing engrossam cada vez mais a lista de empresas que preferem contratar serviços no exterior.
“Nós só conseguimos ampliar o nosso negócio graças à transferência para Argélia e Marrocos. Dessa forma, foi possível triplicar o número de funcionários”, explicou Olivier Duha, vice-presidente da segunda maior companhia de telemarketing da França, a Webhelp. Tunísia, Marrocos e Argélia são os destinos desse tipo de companhia, já que os habitantes falam também francês, além do árabe. “A realidade é que, hoje, temos 2,5 mil funcionários na França e 4,5 mil no exterior, com expectativa de passar para 5 mil em 2011.”
Também os custos envolvidos na demissão de um funcionário - as indenizações podem ser equivalentes a mais de 30 vezes o salário - acabam desencorajando a assinatura de contratos de trabalho com duração indeterminada. Durante os protestos que tomaram conta da França em outubro, uma das principais queixas dos jovens é a de que a média de idade para a primeira contratação formal acontece apenas aos 27,5 anos, três anos após o término dos estudos superiores.
Competitividade mete medo
Laurence Parisot, representante número 1 dos patrões e defensora antiga da diminuição dos custos do trabalho e da demissão, sintetiza a situação em que os empregadores, especialmente os chefes de pequenas empresas, se encontram. “Os nossos cidadãos não têm consciência de é que preciso fazer progressos em relação ao que vem sendo feito no resto do mundo”, afirmou Parisot, presidente do Movimento das Empresas Francesas, a principal organização patronal. “Talvez porque o nome competitividade lhes faça medo, já que muitos associam competitividade à pressão, aceleração, estresse. No entanto, a competitividade é mais uma política que precisa ser adotada para que cada empresa francesa tenha as mesmas chances que as estrangeiras.” Para ela, a reforma das aposentadorias é apenas a primeira de uma série de reformas estruturais que o Estado francês precisa encarar a fim de voltar a ser competitivo no plano internacional.
O problema é que o Estado de bem-estar social está para a França como o liberalismo está para os Estados Unidos: é um valor cultural da sociedade, fruto do lema revolucionário “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Os impostos implícitos na contratação de um empregado viabilizam um dos colchões sociais mais confortáveis do mundo. Na França, a duração do seguro-desemprego pode ser de até dois anos, período durante o qual o trabalhador demitido tem direito a cursos e formações para se aperfeiçoar na carreira ou mudar de ramo, além de ser contatado regularmente pelo serviço social para novas propostas de emprego. Enquanto o desempregado não encontra uma nova vaga que lhe convém, ele pode permanecer sob a tutela financeira do Estado.
Um dos exemplos mais recentes de como essa política pode ser tranquilizadora, apesar de penosa para o empregador, aconteceu na época pós-crise econômica. Apesar de os níveis de desemprego terem voltado a tocar os 10% na França e em outros países da Europa que adotam sistemas parecidos, a qualidade de vida da população ficou preservada. Mesmo se perdem o emprego, os franceses mantém uma renda mensal equivalente ao último salário.