A sociedade dos Narcóticos Anônimos atua em 130 países e, há quase seis décadas, ajuda pessoas a se livrar de casos de dependência dados como perdidos
Por: Roberto Amado
O grupo de pessoas é tão heterogêneo que parece não fazer sentido. Um senhor de terno e gravata conversa afetuosamente com um jovem negro, de calças rasgadas e boné invertido. Jovens se misturam com mais velhos. A moça de cabelos coloridos discute com intimidade calorosa com a senhora elegantemente produzida. Aparentemente, não há nada em comum entre eles. Mas raramente se vê um grupo tão unido em torno do mesmo objetivo.
Eles são adictos. Pertencem à irmandade dos Narcóticos Anônimos e se reuniram para mais um encontro. Estão leves, descontraídos. Alguns em volta de um rapaz de cerca de 30 anos, com calças de motoqueiro. É o primeiro dia dele, hoje “a pessoa mais importante” da reunião. Ele sorri e se sente querido, mas não deixa de manifestar algum nervosismo. Olha com admiração para seu interlocutor, um rapaz que declara estar “limpo há oito anos, sete meses e 21 dias”. E só por hoje.
Na reunião quase todos falaram. Iniciaram suas partilhas declarando o tempo que estão “limpos”, agradecendo a ajuda de todos e de uma “força maior” e terminando a introdução com uma espécie de “amém”: só por hoje - a expressão que dá o caráter desse esforço individual e coletivo, o momento congelado, a exclusão do passado e do futuro. Por hoje cada um deles conseguiu manter-se longe dessa “doença”, como definem.
“Uma doença incurável, mortal e progressiva”, diz o relações públicas anônimo, mais de dez anos limpo, hoje assumindo responsabilidades dentro da irmandade. São duros consigo mesmos, procuram um olhar realista sobre o problema, cobram-se disciplina e sabem que são olhados com preconceito por boa parte da sociedade. É essa mesma consciência que permite alimentar a convicção de que a doença pode ser tratada com sucesso.
Para isso, é preciso participar dos grupos e adotar os 36 princípios espirituais. Os 12 passos definem o caminho do tratamento; as 12 tradições definem comportamentos; e os 12 conceitos para o serviço determinam as práticas operacionais da irmandade, o correspondente a aspectos administrativos. Com uma estrutura complexa, que envolve grande quantidade de filiados e muitos eventos, a irmandade precisa de organização e objetividade. E salvo algumas exceções - profissionais específicos, como contadores e faxineiros -, todos os trabalhos administrativos são executados por adictos voluntários, que assumem cargos, como na tesouraria, em mandatos que normalmente duram um ano.
12 passos
O mais importante talvez sejam os 12 passos. Cada um deles determina o que se deve fazer para a recuperação do adicto. Entre outras mensagens, eles recomendam: o firme reconhecimento da doença; a busca pela reparação dos erros cometidos, principalmente com a família e amigos; e a aceitação da existência de uma “força maior” - que pode ser um deus de qualquer religião ou simplesmente o próprio grupo que se frequenta. Não há nenhum tipo de restrição social, espiritual ou racial, assim com não há qualquer forma de pagamento - apenas contribuições voluntárias. A única exigência é “reconhecer que é um adicto e estar disposto a se recuperar”, como diz um de seus membros, repetindo o que aprendeu há apenas 15 dias.
O método dos 12 passos não é uma exclusividade do NA - na verdade, é utilizado pelos alcoólicos anônimos ou por qualquer irmandade com objetivos semelhantes. A diferença é que os Narcóticos Anônimos incluem usuários de todas as drogas, inclusive o álcool, sem distinção. Apenas o tabaco é tolerado, sobre o qual a irmandade exime-se de dar opinião.
É assim desde 1953, quando foi criado no sul da Califórnia, nos Estados Unidos, por um grupo egresso dos Alcoólicos Anônimos. De lá para cá, a sociedade só tem crescido, espalhando-se por mais de 130 países, nos quais ocorrem por volta de 36 mil reuniões semanais. No Brasil, estabeleceu-se na década de 1980. As reuniões - momento mais importante do programa, em que os membros se reúnem para partilhar - são feitas por mais de 180 grupos. Não há registro da quantidade de membros, até porque não há inscrição ou nenhum tipo de controle. A sede central da irmandade, na Califórnia, apurou em uma pesquisa que 12% dos membros estão há mais de 20 anos sem consumir qualquer tipo de droga; a maior parcela, 33%, mantém-se limpa entre um e cinco anos.
A recomendação da irmandade a cada novo integrante é participar de 90 reuniões¬ nos primeiros 90 dias. “O começo é bem mais difícil e é o espírito de união dos grupos, essa identidade entre todos, que nos dá força para continuar em frente”, diz um membro que já ultrapassou a marca dos 15 anos e continua a frequentar quase diariamente as reuniões. A maioria dos participantes, principalmente os mais bem sucedidos no “tratamento”, é bem assídua e faz das reuniões um lugar de encontro, de troca, de amizade, de relações sociais em geral. Não são raros os casamentos entre membros.
“É uma terapia de espelho”, resume o relações públicas. A principal dinâmica da recuperação é a partilha, momento em que, por sete minutos, o membro dá o seu depoimento. Nessa hora, a pessoa fala o que quiser e muitas vezes o assunto nem passa perto do consumo de drogas. Apenas fala da sua vida, das suas preocupações, das suas alegrias. “Saber que estou falando para pessoas que entendem perfeitamente as minhas dificuldades é muito bom. Não poderia falar dessa forma com qualquer um da minha família ou amigo. Só nas reuniões é que me sinto completamente compreendido”, diz um integrante, limpo há dois anos.
Quando você encontra seu semelhante, explica o relações públicas, há essa identidade, essa troca. Isso, em outras palavras, quer dizer amor. “O amor entre os semelhantes é o nosso principal remédio”, completa.
Mais que reuniões
Aqueles que querem realmente abandonar o uso de drogas precisam adquirir outro estilo de vida - mudar radicalmente o meio social que frequentam, os programas que fazem e às vezes, conforme o caso, até a profissão que praticam. Em todas as reuniões, há na lousa uma lista de “Evite” e “Procure”. Nela, recomenda-se evitar aqueles ambientes e pessoas que possam propiciar recaídas e procurar novas atividades, mais saudáveis.
O tratamento não se restringe às reuniões¬. Há um trabalho de suporte fora delas também para que ninguém tenha recaídas. Normalmente, cada membro tem um padrinho ou madrinha a quem deve recorrer a qualquer hora, em qualquer dia. “Tive a sorte de escolher bem a minha madrinha”, diz uma jovem, lembrando-se dos momentos difíceis que vem passando longe das drogas. “Sem ela, não teria suportado a abstinência. Quando estive mal, a ponto de desistir de tudo, foi ela que me socorreu, conversando, me ouvindo, me orientando.”
Além disso, não faltam encontros. “Nós gostamos de festa”, diz o relações públicas. Há um calendário repleto de eventos locais, regionais, nacionais e internacionais - e a frequência é sempre muito grande. Nesses eventos, ocorre intercâmbio entre membros e uma ampla socialização. Também ocorrem partilhas e exposições temáticas, quando os mais experientes falam sobre algum passo ou tradição. E também muita farra regada a sucos e refrigerantes.
Todos estão unidos contra a recaída - o inimigo iminente. Sob o lema “a dor é inevitável, mas o sofrimento, opcional”, eles resistem. “Todos temos consciência de que possuímos uma doença comportamental que pode se manifestar a qualquer momento. É uma doença que tem um aspecto físico, determinado pela compulsão, um aspecto mental, que é a obsessão, e um aspecto espiritual, no qual se encontram defeitos de caráter, como o orgulho, a mentira e a manipulação das pessoas próximas”, explica o relações públicas. Faz parte do tratamento assumir essas condições.
Para conseguir a droga um adicto é capaz de tudo, explica outro integrante: “Ele vende o carro do pai, engana seus amigos, trai a mulher e até se prostitui”, diz. Limpo há quatro anos, 11 meses e 28 dias, ele em breve fará a “troca de ficha”, um momento especial no grupo em que se comemoram as datas de “aniversário” dos membros. “Daqui a dois dias, vou completar cinco anos de vida”, orgulha-se. “É isso mesmo, aqui eu nasci de novo.”